domingo, 20 de março de 2016

Fora Dilma!

Eu tenho uma simpatia assumida pelo Lula e ainda mais pela Dilma (é sim, ela é mulher, pra ela é muito mais difícil!!!), porque acho que o Brasil nunca viveu um processo tão absurdamente explícito de diminuição da desigualdade social que é, pra mim, a coisa mais grave a assolar o nosso país! Lula e Dilma não são os responsáveis exclusivos por isso, já que presidentes, ao meu ver, são quase figuras simbólicas de uma estrutura política muito mais complexa, que é onde acontecem as coisas de fato. Mas são eles, sem dúvida, os representantes dessa grande mudança!

Eu acho uma puta sacanagem o que está sendo feito com eles, não porque eu acredite que são inocentes das acusações. Eu não acredito! Acho que são culpados de tudo e mais um pouco.

Também não estou querendo defender “bandidos”, até porque eu sei  - todos sabemos,  que infelizmente, no nosso país, nem sempre podemos ser maniqueístas na definição de mocinhos e bandidos, ainda mais se a lei for o principal critério de avaliação...

Pra mim, a sacanagem que está sendo feita é esse teatrinho descarado do "óh! vcs roubaram! óh! vcs desviaram verba! óh! que absurdo!", como se não fosse essa a regra a despeito das leis! Teatrinho para punir quem cedeu à putaria (procurei palavra mais refinada, mas não encontrei) para poder entrar no jogo (ou alguém acredita que seguindo a linha tradicional do PT, com discursos inflamados sobre reforma agrária, e sem verba/mensalão pra pagar campanha política do Duda Mendonça o Lula teria sido eleito?) - e depois, é claro, acabou se perdendo na esbórnia, porque só monge budista (ou algumas exceções, sei lá, algum político menor, tempos atrás, prefeito de alguma cidade da grande SP, de repente...) dá conta de se resignar diante de tanta tentação (e diante de outras coisas menos concernentes ao desejo e mais associadas à preservação da própria vida mesmo...). Teatrinho para tirar de cena aqueles que já cumpriram a sua função de “oposição” o que, em uma democracia, significa se tornar ícone do poder-instituído para que os donos do poder-de- fato retornem, renovados, aos seus papéis de protagonistas, e no caso, com seus figurinos verde-amarelos impregnados com um excitante perfume revolucionário!

Mas, apesar disso tudo, eu não acho que a nossa função política, como cidadãos, seja ir às ruas defender o PT. Acho isso bem estranho, inclusive! Tive uma grande decepção quando, ingenuamente, acreditei que as manifestações do dia 18 de março eram em prol da democracia, em defesa de uma investigação idônea nas operações realizadas pela Polícia Federal. Uma investigação que não se mostrasse mais corrupta do que os próprios investigados! Já que a bandeira mestra é o fim da corrupção...

Então, fiquei meio atônita vendo o Lula discursar na avenida Paulista para a CUT, para o MST, para a UNE...  e também para os cidadãos em geral (muitos meus amigos, inclusive), destituídos de entidades a representarem que, movidos por uma estranha paixão, foram às ruas com suas camisetas vermelhas! Achei aquilo meio anacrônico e totalmente despropositado. Mais sentido fazia a atitude dos manifestantes do dia 13, expulsando os políticos oportunistas, quase sempre diretamente associados aos que estão contra o PT, por serem, partidariamente, da oposição.

Para mim, os que enxergam essa tragicomédia armada, com direito a circo midiático e novos heróis da nação (ai que preguiça daquelas bandeiras com a cara do Moro! Não sei como os anti-anti-governistas não colocaram uma roupinha de Robin nele, para fazer par com o Joaquim Barbosa vestido de Batman... que tristeza a maneira como se manifesta a nossa consciência política, que humor pobre e destituído de poder estético... assunto para outro texto, pois esse não daria conta!), os que se indignam com as acusações ao PT devem se resignar ao inevitável, devem dar o bode ao sacrifício e honrar o seu sangue nas atitudes do porvir!

Quem defende o PT nem sabe mais o que defende! Os opositores estão certos: se somos contra a corrupção, temos que ser contra os corruptos! Dilma e Lula não são nossa mãe e pai para ficarmos agarrados afetivamente às suas figuras humanas. Eles são seres políticos. Sabiam que o olhar sobre eles seria muito mais rigoroso quando chegassem ao poder, por representarem a eterna oposição aos poderosos sem escrúpulos! E escolheram ceder. Talvez de forma heroica, como única maneira de poderem, de dentro, fazer ao menos o mínimo pelos pobres brasileiros, oprimidos por anos a fio (e eu acredito nisso, a despeito do sorrisinho sarcástico dos que não têm fé!, então não pensem que vou engrossar o discurso dos xingadores de plantão, ignorantes dos pés à cabeça!). Talvez por descaso e oportunismo, legitimando Paulo Freire, e ascendendo de oprimidos a opressores, sem cerimônias. Mas para o contexto, pouco importa.

É hora de assistir ao enforcamento. Vamos observar, resignados, às cabeças decapitadas. E que o sacrifício não seja em vão. A verdadeira luta não se faz nas ruas, diante dos holofotes e das câmeras da televisão. Impeachment por impeachment já tivemos um, queimando a largada da nossa curta história democrática, e o que estamos vivendo hoje só demonstra que de nada adiantou irmos às ruas com as caras pintadas nos anos 90. Vamos mudar a estratégia.

É hora de criar formas mais eficientes de atuação. A primeira delas, para mim, é garantir que as pessoas tenham acesso à informação. Começando por você mesmo. A gente se acha muito politizado, mas quando começa a tentar entender de fato os processos políticos se apavora com a própria ignorância. Ao mesmo tempo, desiste antes de fazer algo que realmente possa fazer diferença, pois a burocratização extrema dos sistemas é totalmente desestimulante. Então, vamos guardar energia (e tempo!) para atuar de maneira eficiente na nossa militância. E utilizar o maior legado do PT, que é o aumento da auto-estima da nossa população, a nosso favor.

O acesso a coisas muito básicas, mesmo que de forma ainda precária, como saúde, saneamento básico, energia elétrica e educação despertou o sentimento de pertencimento em pessoas que não se viam como cidadãs e hoje já acreditam ter voz para mudar o país. E mais do que isso: acreditam que suas ações podem mudar o seu entorno (sim, o nosso entorno é maior do que o país, a concretude de um supera a abstração do outro...), como pudemos ver na ocupação das escolas de todo o Brasil, que agora repercute em ações concretas dentro das instituições que, podemos crer, vão começar a mudar uma das maiores pragas desse país: o nosso sistema educacional (que tem um projeto pedagógico alienante, já que destrói a curiosidade natural do indivíduo e acaba com o prazer pela busca do conhecimento, ao afastar o estudante das questões interessantes do seu cotidiano convencendo-o de que aprender um monte de abstrações inúteis é muito mais importante... mas isso também é assunto para outro texto...).

A mudança se dá nas nossas ações cotidianas. E manifestar contra o impeachment (ou a favor dele, no caso, tanto faz), apenas nos faz perder tempo e energia da luta legítima! Eu, se fosse a Dilma, inclusive, já teria dito: “falou, galera, eu já fiz o que eu tinha que fazer, agora é com vocês! Tô indo, para que vocês saiam das ruas e vão à luta!...”

terça-feira, 8 de março de 2016

Onde está o machismo?


Eu adoro essa onda feminista que está invadindo as redes sociais.

Estou sempre a me emocionar com posts e vídeos, como um em que meninas e mulheres escrevem em caixas de papelão brancas o que tiveram que deixar de fazer por questões de gênero, e depois “destroem” a(s) caixa(s). Mesmo que a proposta, na verdade, seja boba, algo como uma vivência promovida em encontros de auto-conhecimento, o vídeo tem apelos emocionais (bem básicos) – música comovente, ações em câmera lenta e, no final, uma parede enorme de caixas sendo derrubada por uma pequena menina negra – que te fazem chorar!

É revigorante a ideia de que nós, mulheres, oprimidas violentamente por séculos, enfim vamos poder viver na plenitude da nossa potência, com liberdade, os nossos desejos e ideais! É algo catártico de tal modo que não é preciso muito para gerar empatia e comoção.

E aí mora o perigo. Me faz lembrar a onda de manifestações que invadiu o país em 2013. Fiz alguns “inimigos” entre os meus amigos esquerdistas e humanistas nessa ocasião. Quando eu afirmava que era contra essa “histeria coletiva” em prol das manifestações, gerava algo parecido com o que acontece quando digo que gosto do Paulo Coelho ou do FHC (pois é, eu gosto, de ambos!), mas com menos sorrisos (às vezes com nem um sorrisinho)… E a indignação crescia quando eu explicava que achava que, ao participarem de uma manifestação, as pessoas se redimiam de suas obrigações como cidadãos conscientes e, felizes, voltavam para sua rotina individualista e alienada, com a consciência limpa e a sensação de dever cumprido. E continuavam a não saber em quem votaram para vereador na última eleição…

Quantas pessoas que participaram das manifestações contra o aumento do ônibus em São Paulo (e depois em tantas outras cidades do Brasil), acompanharam o desenvolvimento e, principalmente, o desdobramento e consequências do não aumento? Na época, o Alckimin e, antes que me xinguem, o próprio Haddad, afirmaram categoricamente que se aquela receita não viesse das passagens, viria de outro lugar. Certamente foi o que aconteceu, e os R$ 0,20 foram embutidos em algo menos explícito e quem sabe muito mais prejudicial à sociedade, sem causar qualquer alarde!

Política é algo tão ridiculamente complexo, que devíamos ficar mais quietos e estudar mais para poder cobrar por mudanças realmente significativas. E quando uso a expressão “ridiculamente” é bem de propósito. É ridículo como a burocracia foi se instalando, de maneira sistêmica e sem culpados individuais, ao ponto de sermos incapazes de acessar e compreender o funcionamento da nossa sociedade, sem um esforço hercúleo! E também de modo a não sabermos a quem recorrer para obter ajuda ou mesmo para cobrar mudanças.

Em cidade pequena a gente percebe isso com mais clareza. Dia desses participei de uma conferência pública na minha atual morada, a cidade de Bertioga, cujo objetivo era o Plano Municipal de Cultura, já em fase final de elaboração. Diante do questionamento geral dos presentes, em relação à garantia de que, ao virar Lei, o Plano seria de fato posto em prática, os vereadores e demais representantes do poder público responderam, grosso modo, que é necessário que a sociedade fiscalize e cobre! Alguns mal escondiam o subtexto: “antes de reclamar, vai se informar e participar!”.

Eu achei que estavam certos e resolvi seguir o conselho. Comecei tentando encontrar o orçamento do município para 2016, mas não consegui. Estou tentando até agora. Inclusive, procurei ajuda das próprias pessoas que me aconselharam a me informar, mas não a obtive!
(E no exato momento em que estou escrevendo esse texto, recebi de uma amiga um documento atendendo à minha solicitação, com CENTO E UMA PÁGINAS e muitos termos técnicos ininteligíveis!)

É nessa hora que a gente desiste! Porque dá muito trabalho. Protestar de maneira genérica, contra tudo e todos é mais fácil e gratificante, pois é pontual e sempre encontramos vozes para fortalecer o nosso discurso, mas garantir que algo seja feito para uma mudança real, é difícil, demorado e cansativo.

Vejo de forma análoga essa união virtual contra o machismo. É adorável, comovente e catártico. Mas não promove mudanças. Ao contrário, gera a ilusão do dever cumprido e isenta as pessoas de fazerem coisas difíceis e trabalhosas que garantam um real questionamento, algo que ataque a rede intrincada de impedimentos para chegarmos ao centro causal do problema e não apenas se indigne contra falsos efeitos periféricos!

O verdadeiro machismo é invisível e sorrateiro. Se manifesta nas nossas atitudes cotidianas, de forma implícita. E até em atitudes tidas como feministas. Ações de grupos ativistas em prol da descriminalização do aborto ou contra o abuso médico de parturientes, ou em tantos outros exemplos de lutas justas para o empoderamento da mulher são, muitas vezes, machistas, quando transformam vítimas em inimigos a serem combatidos e acabam ampliando a desunião e até a rivalidade entre as mulheres de um determinado coletivo.


Também acho machista o sarcasmo com que algumas mulheres conclamam os homens a compactuarem com elas na luta contra o assédio. Ao postarem, por exemplo, um vídeo com uma “pegadinha” em que um homem em uma escada rolante acaricia a mão de outro que vai posada no corrimão da escada contrária, gerando em quem foi “assediado”, quase sempre, uma reação indignada e agressiva; Então, elas provocam: “aí o assédio é desrespeito, né?”.

Um toque de mão é assédio?!! Do que se trata? Queremos o aval dos homens ou de toda a sociedade para uma reação violenta e preconceituosa diante de um toque de mão? Mais do mesmo: mulheres que se dizem feministas pleiteando o direito de serem babacas como os homens podem ser! Em vez de lutarem em prol do resgate e da re-valorização do PRINCÍPIO FEMININO e, consequentemente, em favor do respeito às mulheres, na nossa sociedade.

O PRINCÍPIO FEMININO (e não necessariamente A MULHER) acolhe, cuida e se submete. Aceita e se resigna. É biológico! Se você já gerou um bebê em seu ventre e depois o amamentou em seu peito sabe o significado e a importância vital dessas palavras. E se você observa a deformação constante dos processos da maternidade, visando a redução máxima do tempo dedicado ao outro, no caso, ao feto/bebê, e também ao desaparecimento das características maternas – ah, se fosse possível! - então você sabe o quanto essas palavras, os conceitos a elas atrelados e as práticas que geram os conceitos ganharam um sentido pejorativo e até aversivo na nossa sociedade!

E antes que esse texto seja reduzido ao parágrafo anterior e jogado na lixeira do seu computador, juntamente com os textos da Fernanda Torres, mas sem direito a respostas inflamadas, pois eu não sou colunista da Folha de S. Paulo, sigo explicando: Se a necessidade primitiva do acolher/cuidar/submeter-se/aceitar/resignar-se é BIOLÓGICA, a manifestação simbólica dessa necessidade em uma sociedade evoluída (sem juízo de valores, apenas no sentido cronológico, ou seja, uma sociedade mais complexa em relação às sociedades primevas) ultrapassa os limites de gênero. Não é preciso ser mãe e nem mesmo ser mulher para entender o quanto esses conceitos são imprescindíveis no nosso cotidiano social. Se você já foi inferiorizado por um médico ou médica num momento de total vulnerabilidade física e emocional, ao querer participar de forma ativa do seu tratamento; se já foi ridicularizado por um professor ou professora por expor sua ignorância e consequente desejo de aprender o que lhe interessa e não o que as apostilas mandam; se você já foi espezinhado ou ignorado por um político que você elegeu ou por uma empresa que você contratou, ao reivindicar que os contratos sejam cumpridos; se você, quando pequeno, já foi maltratado em qualquer nível por um adulto de quem você dependia, por não querer ter suas opiniões e desejos desconsiderados só por ser uma criança; enfim, se você já foi hostilizado por alguém que assumiu uma posição de poder quando deveria cuidar de você, então você sabe o significado e a importância vital dessas palavras, que foram ganhando conotação pejorativa nessa sociedade em que o PRINCÍPIO MASCULINO se tornou o-único-potente e o-único-presente.

E se você já passou por qualquer uma dessas situações é capaz de compreender que a pior consequência do machismo para a nossa sociedade não é o repreensível confisco dos direitos das mulheres, mas antes a ridicularização e o rebaixamento ideológico do princípio feminino, ao ponto de gerar o repúdio generalizado às funções femininas. Funções essas que, em uma sociedade ideologicamente positiva, podem ser exercidas livremente por homens e/ou mulheres, de acordo com sua vocação e com sua afinidade com as características do princípio feminino, obviamente presentes (mesmo que hoje ausentes) em tais funções.

É também nesse sentido, para além das restrições de gênero, que podemos afirmar que ao feminino pertence a intuição. A capacidade de se comunicar de forma sensível e delicada. E delicado, aqui, não é sinônimo de frágil, é palavra irmã da palavra sutil. Numa sociedade em que o princípio feminino está presente e empoderado um toque de mão é bem-vindo (podendo ou não ser retribuído, em uma cadeia de ações e reações que podem ou não levar ao sexo) e não é considerado assédio! Pois os corpos se comunicam e as pessoas se respeitam!

Numa sociedade em que o princípio feminino é garantido e valorizado, as mulheres não precisam repudiar, de forma massificada, as cantadas na rua, não precisam justificar com hipocrisia que usam um shorts curto porque está um calor de 40 graus (por favor, feministas, parem de dizer isso!) pois podem afirmar sua sexualidade, seu prazer em serem desejadas, sem temer que o desejo natural por alguém que se exibe sexualmente (porque usar uma roupa sensual é uma exibição sexual, e ter que mentir sobre isso para nos defendermos é que me parece o mais grave!) se transforme em uma agressão, seja ela qual for, verbal ou física, podendo até chegar a estupro e assassinato!


Numa sociedade em que o princípio feminino é sagrado, as pessoas estão unidas, as diferenças são abarcadas e ponderadas em busca de um convívio comum e harmonioso. Não há estímulo à competição. Não há abandono, exclusão, não há “escolhidos”. Não há manifestações de ódio.

Quando o feminino reina, o amor prevalece – e o reino do feminino não conhece o poder, portanto não se coloca acima do masculino. Se devemos escolher uma luta feminista, que ela seja pelo resgate e re-valorização do princípio feminino em nossa sociedade!

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Complexo de Heroína Cristã!


“Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.”



Não adianta, eu nunca serei feliz!

Não é uma declaração decorrente de uma crise existencial clichê, das que venho arrastando por anos a fio, em tom de constatação dramática de uma realidade que independe da minha vontade. É uma decisão! Uma decisão sóbria.

A felicidade tem um preço que eu não posso pagar. Ela custa a abstração total do estado de miséria que assola a humanidade. E quem abstrai isso não pode mais viver a vaidosa fantasia patética de "fazer a diferença", segundo a sua subjetividade, e precisa, enfim, ceder ao impulso (esse sim) verdadeiramente natural, de ser insignificantemente feliz!

Eu poderia ser muito feliz fazendo arte para mim e para a pouca quantidade de gente desse mundo que realmente se dispõe ao mergulho profundo e cheio de escuta e reciprocidade a que a experiência estética nos expõe. Eu seria muito feliz, de verdade! 

Eu poderia ser feliz aderindo a uma comunidade de pessoas livres que se amam sem o peso bárbaro das regras estranhas da nossa sociedade monogâmica e patriarcal. Eu seria muitíssimo feliz!

Mas eu sou incapaz de me desfazer da culpa, esse asqueroso legado pós-cristão (Cristo, mesmo o que está na bíblia, não me parece ter sido um cara – se é que a pessoa, além do simbolismo, de fato existiu – que cultuou a culpa... mas o que fizeram da sua morte, os marqueteiros daquele tempo até os de hoje, nos custa esse peso atroz, que isenta as estruturas de nos policiarem, já que nos vigiamos e punimos uns aos outros, o tempo todo).

Não me parece justo permanecer em um gueto cosmopolita, mergulhada em poesia e estímulos estéticos, abraços, sexo livre e amoroso, quando ali do lado – agora, no caso, aqui do lado, literalmente – tanta gente vive confinada em um mal arejado cubículo de referências poéticas e estéticas, com mentes e corpos deformados pela sucção integral do desejo de liberdade e das últimas gotas de espontaneidade, rindo e chorando em coro diante de um infinito restrito (o infinito entre o zero e o um) de coisas que lhes são permitidas conhecer, sem nem sonhar com o infinito absoluto que existe fora da sua caverna-doce-caverna.

Elas não podem lembrar que é permitido sentir prazer. E que é pelo prazer que vivemos. Então permanecem crendo que o sofrimento é natural: É parte de sua evolução espiritual. A dor cotidiana que carregam, apesar dos inúmeros analgésicos físicos e emocionais que tomam, é nobre marca de sua luta diária! As relações profissionais, de amizade, de sexo e de “amor” são cheias de violência e rancor, pois todos vivem assim!

Não, minha gente, nem todos vivem assim! Há gente livre nesse mundo! E não são monstros pecadores que vão devorar os seus filhos imaculados e perverter o mundo gerando a destruição. Ao contrário. São pessoas amorosas e éticas, empanturradas de respeito ao próximo. E eu preciso dizer isso a vocês  (e convencer a mim mesma), mesmo que estejam tão lobotomizados que não possam vislumbrar nada parecido ao que eu estou falando! Não podem sequer enxergar o que está esparramado diante de todo o seu ser: o seu corpo, sua mente e seu espírito, enfim, o seu eu integral pede prazer! O que você quer é gozar com todos os seus sentidos e em todos os sentidos! Você quer ver coisas belas, quer escutar poesia, quer se sentir parte do mundo, quer ser acolhido, quer a sua pele quente, quer que seu corpo seja tocado, que sua dor seja cuidada... você quer amor e beleza! E no fundo sabe que quem vive essas coisas que você quer não causa mal a ninguém! Mas se você aceitar isso... o que vai acontecer, então? Você vai ter que deixar de ser a única coisa que conhece há muitas e muitas gerações... e isso é a morte... e não queremos morrer (mesmo que tenhamos tanta experiência em praticar a fé em uma vida no paraíso após a morte...)

E eu sei que você sabe de tudo isso, porque se eu sei você sabe! Sem qualquer pretensão: eu sei, porque qualquer um sabe. Saber disso é como saber respirar. É óbvio! É humano... ou melhor, é vital.

Mas você não quer olhar! Você sabe, mas não quer! E eu sempre tive a maldita mania de falar alto, na mesa do jantar, sobre aquele segredo tácito que a família toda se esforça em guardar, não uns dos outros, mas cada um de si mesmo, através da não declaração pública da sapiência!

E eu não me calo, não posso ir lá ser feliz e deixar vocês aqui sufocando por fingir não ver que é possível... se vocês continuarem fingindo, vou acabar acreditando... Se continuarem fingindo que sou eu a desequilibrada, drogada, vagabunda e vocês os sensatos purificados.

Então, eu serei a santa libertadora! Serei Maria Madalena: me fazendo arrependida dos meus pecados pra ajudar algum Cristo a anunciar a boa nova-velha e libertar a humanidade...





domingo, 8 de março de 2015

O dia da Mulher...

Há dois anos encontrei uma carta dentro de um livro velho e tive vontade de criar algo sobre ela. Em princípio quis criar uma peça, mas não me movi para isso e o tempo passou e ela ficou novamente guardada dentro de algum livro. Dia desses a encontrei e comecei a transcrevê-la, com algumas licenças poéticas, sem me dar conta de que estava terminando de fazê-lo um dia antes do dia internacional da mulher...


Minha cara,

Escrevo, primeiramente, para lhe pedir perdão pela minha carta. Você tem razão. Eu não tinha o direito de lhe dizer o que disse. Foi injusto. Mas o que posso lhe dizer é que minhas palavras duras eram direcionadas apenas ao seu marido. Era do machismo dele que eu estava falando. Mas não podia excluir você, pois estaria colocando vocês, um contra o outro. E não era certo fazer isso.

Sei porque você se submete. Sou sua cúmplice e apoio você. Não tem saída. Você é mulher. Além disso, você era uma mãe solteira com três filhos de outro homem pra criar. Quem iria querer uma mulher assim? Ele aceitou você e os seus filhos, você não tem o direito de reclamar da opressão que sofre.

Quando você descobriu que estava grávida dele, vocês não queriam – imagina, quatro crianças pra sustentar! – mas era tarde para o aborto, e ele aceitou ficar ao seu lado, que homem bom ele é! Agora tem, no mínimo, o direito de passar algumas noites bebendo com os amigos (e também amigas, por que não?), enquanto você cuida dessa ninhada que ele aceitou sustentar! (mesmo que suas costuras gerem mais renda do que o emprego dele, que nunca é fixo).

Entendo que não é meu direito cobrar que você não aceite os tabefes que ele lhe dá. Ele tem todo o direito de mandar você fechar as pernas e calar a boca. Afinal, se você sair, se você beber, se você fumar, se você meter!, quem vai cuidar da casa e da família? Quem vai achar as luvas de boxe dele?
Ele está cansado e precisa que você cuide dele. E você deve isso a ele! Eu sei.

Mas para encerrarmos essa guerra, quero lhe pedir que pare de enviar bilhetes eróticos ao meu marido. Isso me irrita. Não me irrita pelo conteúdo, mas porque eu amava você! Eu quis proteger você! Na noite em que eu e o seu marido ficamos conversando até quase o sol raiar, flertamos bastante, e eu disse a ele que você era muito especial, e que ele deveria cuidar de você. Eu o desejei, eu fiquei muito seduzida pelo olhar dele sobre mim, ele me queria, e não parecia estar preocupado com o fato de você estar dormindo no quarto, enquanto conversávamos e nos tocávamos na varanda. Talvez ele soubesse que você não acordaria facilmente, depois de ter passado o dia todo cuidando de quatro crianças.

Sabe que nesse dia eu não transei com o seu marido por sua causa? Por um tempo achei que tinha sido em respeito ao meu marido, mas não. O meu marido é forte. Ele é desejado por muitas mulheres e é livre para viver as relações que quiser. Além disso, seria uma troca justa, já que tínhamos nos deleitado eu, você e meu marido, sem a participação do seu, somente alguns dias antes. E também, meu marido sabe quanto o amo. Quanto eu o quero e admiro, e o meu sexo não seria uma agressão a ele. Mas você é frágil e dependente. E a falta de amor do seu marido por você é tão explícita que facilmente explica o fato de ele se sentir deslumbrado diante de qualquer paixão. Eu senti ódio dele por estar fazendo aquilo com você. E não tive coragem de fazer o que o meu corpo pedia. Mesmo que depois mal tenha conseguido dormir com a dor do desejo reprimido.

Mas na noite seguinte nos encontramos, eu, você e seu marido. Era explícito o desejo de todos e que estávamos livres para enfim viver aquele momento. E eu poderia explodir de prazer. Mas no fim tive que fingir um orgasmo – eu, que não fingia um orgasmo há anos! – enquanto você me tocava e me mantinha longe do seu homem. Não que eu não tivesse prazer com o seu toque, eu teria! Ainda hoje a estimo – com muita mágoa, é claro, mas ainda quero o seu bem...– enquanto pelo seu marido não sinto nada. Mas fiquei tão triste em vê-la me privando de viver aquilo. Logo você que tinha chorado nos braços do meu marido, bem diante dos meus olhos, depois que ele a fez gozar. E eu fiquei distante, observando. Nem toquei em você. Permiti que você vivesse aquele momento que era só de vocês, sem qualquer interferência minha. Permiti que você fosse feliz! Logo você, que na noite anterior eu tinha defendido de sofrer uma agressão, mais uma agressão, mesmo que dessa vez não fosse física, ao não aceitar deitar com o seu marido na sua ausência. Agora, com o seu consentimento, falso consentimento, eu estava ali, diante daquele corpo de homem que eu desejara tanto e que você, ardilosamente, me fez crer que eu poderia ter.

Nessa noite eu senti raiva de você. Num momento em que você foi ver as crianças para garantir que todos dormiam o sono dos justos, enquanto nós queimávamos em pecado, eu cochichei no ouvido dele: “Você vai me visitar um dia em casa, só você, já que sua mulher tem ciúmes de mim e não me deixa tê-lo!”. Mas depois não tive coragem de levar a proposta a cabo. Principalmente sabendo que ele estava apaixonado por mim. Eu também estava. Mas nunca o procurei. Pois olhando pra tudo a distância eu entendia que você estava sofrendo com aquela paixão que ele sentia. Como sempre algo mais interessante que você o puxava para longe de casa. Bruto homem que não a via, tão linda e feminina e servil...

Então eu achei por bem me afastar de você e do seu marido. Para poupá-la. E agora sinto muita raiva quando você envia bilhetes eróticos para o meu marido. Convites ao sexo. Mesmo não estando mais comigo, ele sempre me visita. Age como um cliente comum quando chega na casa, penso que as outras mulheres nem sequer desconfiam de quem se trata, de qual seja a nossa relação. Ele me mostra os seus bilhetes e zomba da sua solidão e eu me compadeço de você, mesmo sentindo raiva por você não me considerar, por você me desprezar ao ponto de tentar seduzir o meu homem para me agredir. Quando eu sempre defendi você!

Por favor, pare!

Quanto à sua resposta à minha carta que, como eu disse, era direcionada ao seu marido, me fez entender porque as mulheres não gostam de mim. Eu já sabia o motivo pelo qual os homens, mesmo me querendo, nunca me amaram. O meu sexo, o meu corpo e a minha voz são libertários e explicitam a opressão a que eles submetem suas mulheres. Faz com que lembrem que somos livres, tão livres quanto eles, e que se não exercemos a nossa liberdade é por medo de sermos queimadas na fogueira e não porque gostamos de nos submeter a eles...  O meu sexo sempre defendeu as mulheres, inclusive as mulheres que estavam sendo traídas pelos seus maridos na minha cama. Quando saí de casa e me mudei para o prostíbulo os homens passaram a me amar, pois o título oficial de puta me diferenciava das outras, e não mais os agredia. Mas as mulheres continuaram me odiando. E só pude entender isso agora, diante da sua resposta à minha carta, que não era, como lhe disse no começo dessa missiva, direcionada a você, mas somente a ele, mesmo que eu tenha me dirigido a vocês dois. Você me disse que eu estava tendo uma atitude típica feminina, histérica e mimada, ao apontar o machismo do seu companheiro. Eu sempre defendi as mulheres, e sempre fui tão ingênua que nunca me dei conta de que elas já sabiam de tudo, e que não precisavam que ninguém ficasse tentando revelar o que elas tinham tido tanto trabalho em esconder, delas mesmas.

Desejo a sua felicidade e a sua paz,

Espero que esse seja o fim das batalhas,

Com afeto e cuidado,

M.


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Casa Vazia


Percorrendo os cômodos vazios da casa ela confere se nada ficou para trás, enquanto as paredes nuas da cozinha fria ecoam as mastigadas da filha que, sentada no ladrilho, come bocados de pizza da noite anterior. A última em que estiveram juntos naquele lugar: pessoas e coisas.

Os carregadores montam um lego no caminhão da mudança, tentando encaixar os vasos de plantas. A mulher tomou o lugar do marido na supervisão do serviço, pois ele já partira, rumo à rodoviária, de modo a tomar o ônibus das 13h30 e chegar ao litoral a tempo de receber o caminhão e descarregar os pertences do casal e da filha na nova morada.

O vaso grande ficou de fora, com uma muda das Lágrimas de Cristo. Ficarão para os próximos ocupantes. Que eles gostem de plantas! É o que lhe resta desejar...

Ela se despede dos homens, deixando-lhes o cheque pré-datado, ainda sem fundos, e o veículo segue o seu caminho, levando a vida no seu baú de 6 metros, empanturrado de histórias encaixotadas.

Mulher e filha, com bagagem para uma semana de estada na casa da vovó, seguem para o interior de São Paulo. Caminhada até a estação de metrô, duas linhas, terminal rodoviário, ônibus para o interior. Está vazio. Que bom, pois a menina, no auge dos seus quatro anos, não se aquieta em seu lugar. Repreendida pela mãe, por ficar “zanzando” no corredor, retruca, debate, desobedece.

- Chega! Se o ônibus brecar, você vai cair! Senta aqui e fica quieta.

Impedida de se mover, presa ao banco pelo cinto de segurança, a garota se debate, chora, berra, inconformada. A mãe tenta conversar, já desesperada com o bem estar dos demais ocupantes do ônibus, cuja indiferença é tanta que explicita o incômodo. A menina não arreda o pé. O escândalo se intensifica. A mulher silencia e ignora. Consegue abstrair o choro. Quase esquece. Até que, lá na frente do ônibus, uma senhora negra se levanta, e olha para trás com expressão de impaciência. A mãe a encara, orgulhosa, não se intimida. A mulher faz um gesto de questionamento com a cabeça.

Você não vai jogar a sua filha pela janela? – Talvez ela queira dizer.

Como a senhora não desiste, mas permanece calada em sua irritação questionadora, a mãe reage:

- O que foi? Criança chora, minha senhora!

A velha se senta, mas não sem antes soltar um leve grunhido de insatisfação. A mãe não perdoa:

- Eu sou uma cidadã, minha senhora, tenho o direito de viajar com a minha filha em um transporte público, se a senhora está incomodada, compre um carro!

Silêncio. A jovem mãe está só. No seu pensamento não pode acreditar que uma mulher, velha e negra, alguém triplamente vitimizada pela falta de justiça social, de cooperativismo, de coletividade, possa ser tão terrivelmente individualista e cruel. A indiferença dos demais passageiros lhe causa um nó na garganta. Não devia! Com a nova moda, eles poderiam ter resolvido linchá-la por não ser capaz de manter a filha calada... ficaram mudos, estrategicamente absortos em seus livros e smartfones. Antes assim... não é?

A viagem já vai pela metade quando a menina, que agora estava mergulhada em brincadeiras silenciosas – com a graça de deus!, vira-se para a mãe com as bochechas infladas e a boca travada. A mulher se desespera em busca do sempre presente saquinho plástico, mas não há tempo, a garotinha lava o chão e alguns bancos do veículo com um terrivelmente fedorento vômito!

O ônibus estava vazio, e ninguém foi atingido pelo asqueroso jorro infantil! E como elas estavam sentadas próximas ao banheiro, a mãe pode limpar tudo com apenas 34 pedaços de papel toalha e 23 viagens entre poltronas e sanitário... tranquilo!

Enfim, chegaram! Enfim, estavam acolhidas, na casa da vovó!

Deitada na cama de solteiro, do quarto de hóspedes, na casa da mãe, ela sente um estranho sentimento de abandono. A filha dorme quieta, num colchão ao lado da cama. Sentindo-se só e angustiada, ela liga para o marido em busca de cumplicidade. Ele está ocupado. Sozinho na casa vazia, ele tapa os buracos da parede com massa corrida. Buracos dos quadros, espelhos, porta retratos, prateleiras, estantes. Buracos de prego pra amarrar barbante de bexiga, buraco de gancho de rede pros amigos bêbados se jogarem na madrugada, buraco dos cartazes e gráficos para a reunião sobre a circulação de um espetáculo teatral pela Região Norte do Brasil, buraco de cenário e luz fixados pelos cômodos para a apresentação de um experimento cênico, buraco do cabideiro oferecido ao morador temporário. Buracos infinitos a serem tapados. Lixa as paredes recortadas das mais diversas cores para poder cobri-las de um cordato e inofensivo branco. Esticado sobre o último degrau da escada de madeira, ele equilibra tábuas de 4,5 metros de comprimento e as prende ao forro do quarto grande, sozinho. E depois do longo dia de trabalho, não será possível tomar banho antes de se jogar no velho colchão de solteiro, torto de tantos diferentes hóspedes que já acolheu. Não pode ligar o chuveiro, pois descobrira uma infiltração no cano do ralo do box, e precisou quebrar tudo para arrumar... Ele até tentou procurar um hotel, lá por perto, já que não tem carro, mas o máximo que encontrou foi um motelzinho fuleiro, que não tinha vaga...  talvez tome um banho frio na pia, se resistir ao frio da noite paulistana.

Ela desliga o telefone e está pior. Resolve fumar um cigarro antes de dormir. Vai até a garagem e recosta-se no portão para observar a rua. São pouco mais de 23h e durante todo o tempo que ela permanece lá, nenhum passante. Nem a pé, nem de carro. Sente uma nostalgia adiantada de ser paulistana. Pensa nas ruas do (já não seu) bairro, sempre movimentadas: os que vão e vem do trabalho, os que chegam e partem da academia, os que caminham até a padaria, os que correm ao supermercado antes que feche e os muitos que passeiam, despreocupados, com seus cães. Assim é um típico bairro paulistano por volta das 23h. Foi-se o tempo que, nas cidades do interior, as pessoas sentavam em cadeiras na calçada para papear e ver o movimento. Estão todos fechados atrás de grades e muros altos, protegidos por cercas elétricas. Em São Paulo, paradoxalmente, é mais possível cruzar com o vizinho e falar sobre o tempo seco e a terrível tragédia que matou o presidenciável.  Mesmo que não se possa pedir um chuveiro emprestado...

Volta para a cama e lá permanece, acordada, por longas horas. Imaginando o desconforto do marido. Sentindo-se um pouco sem sentido por estar tão longe. Quase não entende os porquês desse momento estranho. Ele lá, sozinho, reformando a casa toda, sem ter um pouso confortável ou um chuveiro quente. Ela tendo que partir com a filha, para quase 300 km de distância, pois já não há lar em São Paulo...

Aquela casa, agora vazia, foi o sonho utópico de um lar estendido. Foi um investimento de fé em uma sociedade comunitária, em que a preocupação com o outro não se manifesta através dos textos postados nas redes sociais, mas no cotidiano carnal. Na vida de todo dia. Na porta sempre aberta, na comida feita com as mãos e oferecida ao irmão, na hospedagem do amigo sem pouso, no encontro para fazer pão, para fazer telhado, para fazer peça de teatro.

Pensando nisso, ela sonhou acordada. Sonhou que estava em uma grande cozinha, cercada de enormes panelas e, em parceria com outras mulheres, preparava uma refeição coletiva, enquanto as crianças brincavam juntas no gramado, as mais velhas cuidando das mais jovens, e os homens, em mutirão, reformavam uma casa colorida.



PS - esse post devia vir acompanhado de fotos dos inúmeros encontros que aconteceram na Rua Assungui, 150, nos últimos 5 anos, mas descobri, vasculhando infinitos álbuns digitais, que momentos felizes não são fotografados... 



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

E então, vai ser normal ser puta?

Nós humanos, temos mesmo um cabresto social.

Já escolados no curso da história, continuamos presos ao nosso tempo, fiéis às caretices que na próxima década serão facilmente aceitas pelo senso comum. Podemos provocar o estouro da boiada, a qualquer momento, mas não o fazemos. Aguardamos, mansinhos, a abertura da porteira invisível que nos permitirá passar para onde antes não podíamos nem sonhar em pisar.

Olhamos para o passado que a televisão nos mostra, zombeteiros ou chocados, com coisas que um dia foram consideradas normais: mulheres vestidas com maiôs gigantes que mais pareciam armaduras de verão; a música de Chiquinha Gonzaga, considerada uma afronta à moral e aos bons costumes; homens que matavam suas esposas por adultério e eram apoiados pela lei. E sem nos darmos conta da anedota que protagonizamos, voltamos para o presente e iniciamos o nosso blábláblá moralista. Ficamos indignados com as microroupas, cada vez menores, usadas pelas garotas de todo o Brasil (na praia até pode, mas dentro de uma faculdade, que absurdo!!). Não gostamos de funk e de toda a cultura da periferia, que vai tomando conta do país; e à revelia dos que se indignam porque o Brasil continua ganhando fama, mundo afora, com o mercado do sexo e afins, exportamos em enxurradas os corpos turbinados que se chacoalham, frenéticos, na batida do pancadão. Nos apaixonamos como verdadeiras julietas e exigimos fidelidade, pois poligamia (ou poliamor) é mesmo coisa de vagabunda! Mas o desejo pulsa e vivemos casamentos muito mais duradouros do que felizes, ou “pulamos a cerca” às escondidas, mantendo o véu hipócrita e civilizante das aparências. E que vaca a famosa que traiu. Que canalha o ator que apareceu beijando outra. Que afronta a novela que coloca um médico rico e bem intencionado profissionalmente, que ama a família, mas trai a esposa. O adúltero não pode ser humano, deve estar pintado com as cores do demônio.

A mesma novela instiga a polêmica: enfim teremos o primeiro beijo global-gay? Não nos damos conta do patético! Casais formados por pessoas do mesmo sexo pululam nas ruas das cidades de todo o Brasil. Na falta de pessoas públicas que assumam sua orientação sexual, anônimos assumidos tornam-se celebridades do entretenimento à política, para representarem a massa GLBTS que se agiganta. Enfim, uma Daniela Mercury se enche de esperar que se faça o acordo tácito que torne legítimo o seu amor por outra mulher, e divulga para o mundo o seu casamento homossexual. Começam a pipocar jornalista, jogador de futebol, jogadora de vôlei, pouco a pouco se libertando da clandestinidade. Será que já pode? Abriu a porteira? Ficamos ansiosos diante da telinha, esperando que a novela nos dê a resposta oficial.

E quando se torna normal ser gay, perde a graça especular quem é e quem não é. Então vamos logo exercitar nossa nobre missão de freio social em outra freguesia. As boas do momento são as putas! Não as de bordel ou as da Augusta, porque essas estão obedientes em seus lugares.  Falamos de garotas de programa universitárias, de família, que se vendem através de belos sites na internet, que escrevem blogues ou até livros sobre sua profissão. Elas têm clientes cultos que procuram no sexo o mesmo requinte que buscam nos vinhos, e que podem sair com uma puta da mesma forma que o fariam com uma garota qualquer, ou ainda contratar serviços sexuais como quem vai à pedicure. Essas infames é que precisam ser cerceadas, para que não embacem os limites entre o certo e o errado.

Por causa delas, daqui a pouco, nossas filhas vão estar vendendo seus corpos. Imagine! Meninas de família, estudadas, vão escolher seguir esse caminho, e o que faremos? E depois, as semi-famosas que vira e mexe são acusadas pela mídia, de serem prostitutas de luxo, vão começar a assumir: eu sou mesmo. E de repente a irmã da mocinha da novela vai ser estudante universitária e prostituta assumida, e vai ter amigos, frequentar lugares comuns, e até vai ter um namorado.

E então? Vai ser normal ser puta?!!!!!

O que seria da humanidade se assumíssemos publicamente que o desejo reprimido que está em mim está em todos?
Seríamos livres!!! Que horror! Não teríamos mais que esperar a porteira abrir pra caminhar em bando. Poderíamos circular livremente, de acordo com os nossos desejos, as nossas necessidades mais íntimas. Em harmonia com a nossa essência.

E o que seria de mim? Tendo que escolher sozinha que caminho seguir. Sem uma tendência social. Sem as regras de uma época que me abriga e me tolhe, felizmente!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O OUTRO LADO DOS SEUS OLHOS VERDES


Através de você, o universo se refaz.

Vislumbro todas as possibilidades que a vida me dará.

Não há palavras.

Só é possível lágrimas.

Estou sem ar. Extasiada:

Todas as possibilidades da vida?!

A liberdade jamais pensada.

Um novo criar. Criar e com-partilhar.

 

O encontro com a arte que está em repouso no cerne do mundo.

 

Um novo amar.

O Amor.

 

(Ainda pretensão. Ainda dor por não poder expressar o que emerge).

 

Você estava a caminho,

Passou por mim

Me levou contigo.

Convicto, a seguir.

Duvidei tanto.

Duvidei sempre.

Você permaneceu ao meu lado.

Forçando o passo.

Eu sigo, entregue ao caminho que me propõe.

 

Um vendaval de dentro pra fora de mim

E a certeza de um mundo muito maior do que eu poderia conhecer

sem você.

 

Um encontro.

Paixão arrebatadora

Que se desdobra infinitamente.

 

Sou a Rainha, escolhida pelo Rei do Mundo.

Você é parte do todo que pulsa sem moral.

A própria natureza encarnada. A vida plena sem critérios. 

 

Sigo arrebatada das descobertas que me permito através de você.

A nova vida que se faz através dos seus olhos únicos.

A Arte.

O Amor.

A verdadeira liberdade.